Este artigo foi originalmente publicado em duas partes no mês de janeiro, na entressafra de atualizações do blog.
Lembrai-vos da reserva
A reserva de mercado de informática foi mais que uma lei absurda. Foi a encarnação de um estado de espírito que vai muito além dos bits e bytes e permanece vivíssimo entre nós.
Por isso, não é exagero relembrá-la em pleno século 21, quando a maioria dos felizes internautas brasileiros era jovem demais para se lembrar do tempo das importações (legais) virtualmente proibidas. Ou, se tinha idade para tal, achava que informática não era para seu bico. Se cochilarem, podem até cair na conversa da patota que distorce a História de acordo com seus interesses ideológicos, infla supostas qualidades da reserva e nos despista da real natureza de suas desvantagens. Como de costume, pior para os fatos.
Castigos tributários, cotas de mercado exageradas e protecionismo para o bem dos amigos, elementos típicos de Terceiro Mundo, sempre fizeram parte da natureza da política industrial no Brasil. A abertura é exceção. Não surpreende que, tão logo os "cérebros eletrônicos" extrapolem os filmes de ficção científica e surjam como algo útil no mundo real, a construção de barreiras ao desconhecido seja muito mais rápida que a absorção da novidade.
A reserva de mercado de informática surgiu nos anos 70 como extrapolação de um fim bem específico: assegurar a autonomia de computação nas Forças Armadas, que, por motivos estratégicos, não poderia depender de fornecedores estrangeiros. Imagine o que aconteceria com os computadores em caso de guerra com o próprio país que os forneceu?
Neste ponto de vista, os resultados estritamente militares seguem inverificados (e provavelmente tão inverificáveis quanto a utilidade do ritual de mostrar os sapatos nos aeroportos americanos na dissuasão de terroristas), muito menos justificam ideologicamente a escalada de efeitos devastadores fora da caserna. Primeiro, a criação de um aparato burocrático destinado ao planejamento central de tudo que se referisse a computadores no Brasil. Segundo, a criação da estatal fabricante de computadores. Terceiro, o fechamento do mercado aos minicomputadores (sem relação com os micros que usamos hoje; aqueles eram muito maiores) que não fossem feitos pelas empresas nacionais autorizadas.
Na prática, a reserva de mercado se tornou um obstáculo regressivo: enquanto as máquinas de grande porte, usadas em sistemas megacorporativos, não estavam cobertas pela reserva, os relativamente menos ricos e menos poderosos eram obrigados a aceitar os mínis verde-amarelos, qualquer que fosse o preço ou a qualidade. A maioria, é claro, continuou usando réguas de cálculo e arquivos de fichas.
Enquanto o regime era militar e o número de donos de computador cabia num ônibus, ninguém parecia dar muita importância. Até que, em meados dos anos 70, um punhado de garotos impertinentes nos EUA rasgou o livro de regras do establishment científico-militar-corporativo.
Primeiro, um certo Bill Gates começou a vender programas de computador como produtos separados -- até então, eram distribuídos de mão em mão entre os especialistas ou vendidos casados com o hardware. A indústria de programação como um todo subiu como um foguete, tornando-se um negócio bilionário e obrigando os velhos titãs do hardware a dividir poder com empresas emergentes. Mais tarde, a dupla de chatos Stephen Wozniak e Steve Jobs se meteu a besta de fabricar um computador pequenino e barato, capaz de ser usado em casa por gente "normal": era o Apple original, logo substituído pelo Apple II -- o primeiro micro pessoal de sucesso.
Quando acordou para os microcomputadores, o governo brasileiro reagiu da forma tradicional: levantando mais e mais barreiras. Em 1979 os micros foram incluídos na reserva de mercado e criou-se a Secretaria Especial de Informática, vinculada ao Conselho de Segurança Nacional. Nada como um verniz militaresco para X, Y ou Z justiificarem como chovia dinheiro federal em sua horta!
Nos anos 80 a demanda de bens de informática no Brasil se tornou incontrolável. De brecha em brecha, as lojas se enchiam de imitações (caras, atrasadas e freqüentemente incompatíveis) de Apples, Sinclairs e TRS-80s, atendendo a quem não tinha a felicidade de conhecer um bom muambeiro.
A Política Nacional de Informática, aprovada em outubro de 1984, foi a cartada final da doutrina computacional da ditadura: além de incluir o software na reserva de mercado, oficializou a proibição da importação de micros, assegurando que os contrabandistas e os fabricantes de clones brasileiros de sistemas internacionais não vissem concorrência em sua frente. Muito menos agora que a multiplicidade de computadores de oito bits saía de cena, deixando o Personal Computer como plataforma dominante.
Pelo menos desta vez estava determinado que as medidas draconianas expirariam em oito anos, tempo em que a indústria e a universidade nacionais já teriam adquirido a musculatura necessária para competir com os gigantes estrangeiros. Na verdade, antes disso, a reserva já tinha caído de podre.
Suponho que a reserva de mercado nunca tenha sido exatamente popular. Entre os usuários finais, longe de questões de segurança nacional, dotações orçamentárias e lobbies protecionistas, não era mesmo. Queriam, como todo mundo, ter direito de escolha, pagar menos por melhores produtos. A afirmação de que o computador nacional era uma "carroça" estava dolorosamente certa. Mas, se a reserva causou prejuízo tão evidente, será que também trouxe tantos benefícios quantos certos internautas com crises de saudosismo andam dizendo?
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Quando ouvir alguém protestar contra a "exclusão digital", pergunte o que ele fazia na vigência da reserva de mercado de informática, contra quais poderosos interesses políticos, econômicos e ideológicos ele se batia naquele tempo, e do que ele teve que abrir mão na fidelidade às suas idéias. Fora dessa improvável demonstração de sinceridade, nada existe além do blablablá inútil.
Afinal, o conceito da reserva de mercado pode ser resumido na palavrinha tão demonizada (em discurso) pela esquerda: exclusão.
Para os militares, representava a exclusão estratégica dos estrangeiros, ainda que, como efeito colateral, tenha sido tratado como máquina de guerra até um ZX Spectrum (mesmo para os civis, pouco útil além dos joguinhos) eventualmente contaminado pela assinatura de Sir Clive Sinclair. De fato, nada havia contra o micro em si, pois a imitação brasileira do ZX Spectrum, mais cara e de menor valor (lei de Metcalfe: quanto mais compatível, mais vale. Não era bem o caso), era liberadíssima sob o princípio mais agradável ao "capitalismo" nacional: a exclusão dos concorrentes.
Hoje parece mais claro por que Sharp e Gradiente, em meados dos anos 80, jamais lançaram drives de disquete externos para seus micros MSX, apesar da esperança dos consumidores e das repetidas promessas. Por que lançariam? No dia em que enfrentassem competição de verdade, seus produtos virariam pó. E sistemas de oito bits, como MSX, ZX Spectrum, Apple II e outros, estavam com os dias contados. Esta ficha foi a que mais custou a cair entre os usuários brasileiros (eu mesmo incluído; mea culpa), acostumados pela própria reserva a considerar o atraso como fato consumado.
Por fim, a posição dos devotos do nacional-esquerdismo, a religião mais levada a sério no Brasil: a reserva era a oportunidade de se marcar posição ideológica na exclusão de todo devaneio pequeno-burguês envolvendo bits e bytes. Queimar preciosas divisas para que meia dúzia de riquinhos desfrutasse dos simuladores de vôo e dos processadores de texto dos abutres ianques? Nunca!
Enquanto usuários de máquina de escrever celebravam (eu mesmo incluído; mea máxima culpa) a proibição, confirmada em 1986, das joint ventures que teriam trazido um mínimo de atualização à indústria nacional de informática, podia-se ir às bancas e ler extensas reportagens cantando loas aos poderes da reserva contra a prepotência do governo Reagan -- para que a garotada não tenha dúvidas de que vem do passado o esporte favorito da imprensa nacional. A diferença é que, naquele tempo, todos sabiam que era Moscou que patrocinava (a quem argumentar que a história não era essa, corrijo-me: quem pagava os anúncios era Angola, essa potência da economia mundial, com o dinheiro que transbordava de seus cofres).
Porém, a maior parte dos militantes de esquerda ignorou a expansão da informática enquanto pôde. Para eles, a disseminação maciça de computadores, "inclusão digital" propriamente dita, não passava de uma conspiração ardilosa do grande capital; se tivesse que ser realizada, estaria em penúltimo lugar entre as prioridades do sonhado governo do povo.
Poucos perceberam o óbvio. O prazo de validade da reserva de mercado estava perto do fim, a União Soviética também não duraria muito, e quem continuasse enxergando computadores como brinquedinhos dispensáveis teria grandes chances de fazer carreira como eremita. Quem foi esperto tratou de aproveitar o desmonte lento, gradual e seguro da reserva de mercado para conquistar espaços e aprimorar a velha tática da patota: mudar de discurso sem mudar de idéia.
Internet era coisa para gente de visão. Em todo o mundo ainda duvidava-se que a rede mundial de computadores, então não-comercial e sem interface gráfica amigável, teria algo a ver com a "superestrada da informação" dos planos de Al Gore; no Brasil, para piorar, as telecomunicações estavam sob monopólio estatal. Foi aí que o Ibase, Herbert de Souza à frente, conseguiu uma concessão de Internet que nenhuma outra organização não-governamental obteve.
O pioneirismo rendeu frutos. Logo veio a abertura da Internet para uso comercial, a popularização dos browsers e o aumento incontrolável da demanda. Brasília reagiu como de costume: batendo-se em intermináveis discussões sobre como e quando seria feita a abertura das porteiras aos provedores comerciais. Melhor para o Ibase, que controlava a Alternex, o único provedor autorizado a fornecer acesso em casa a usuários pagantes.
Enquanto as reuniões palacianas andassem em passo de caramujo, excluindo a concorrência, e os clientes da Alternex não contestassem as normas ideológicas da casa, parecia tudo ótimo. Até que, em meados de 1995, tiveram que expulsar um direitista inconveniente. Não era exatamente o Mister Simpatia da Internet, mas era até um moderado diante do que se lia em certos setores do mundo dos BBSs (sempre ignorado olimpicamente pela esquerda organizada, mas onde as correntes de pensamento se faziam representar de forma equilibrada). As pretensões ibaseanas de fazer da Internet um clubinho "progressista" foram jogadas contra a parede. Nada mais delicioso do que assumir o poder e silenciar os opositores em nome da liberdade de expressão!
Daí em diante, num exemplo de cara-de-pau que clama aos céus, consolidou-se a virada de 180 graus no método da esquerda mundial diante da informática, de uma vez, a uma só voz, com a desculpa das "redes nômades" ou o que o valha. Em vez de protestar contra os computadores em si, que consumiam empregos e alienavam a garotada, passaram a reclamar que faltavam computadores para os pobres (digo, os excluídos). O resto, porém, continua igualzinho. Os gigantes da informática, Intel e Microsoft à frente, são os mais interessados em transformar em usuários o maior número possível de pessoas -- mas os americanos levam a culpa por manter a informática como uma espécie de privilégio opressor. A intervenção estatal (contra a vontade de estrangeiros de qualquer procedência) na TI condenou o Brasil ao atraso, à glorificação da pirataria e à baixa população de computadores -- mas a adoção de mais políticas públicas (um sinônimo chique para "verbas") é tida como a solução para turbinar a disseminação da informática.
Você sabe que há algo de podre no ar quando velhos imitadores da Coréia do Norte agora querem resgatar a Coréia do Sul como modelo de protecionismo de qualquer coisa. Bons tempos em que eu ouvia da boca de um militante do PT que os tigres asiáticos eram um exemplo indigno de ser seguido, pois sua prosperidade fora criada artificialmente pelos americanos para conter o avanço comunista sobre a região. E que nem um rio de ouro valia a humilhação de se viver na Coréia do Sul sob as botas dos marines. Perfeito. Se a esta altura do campeonato querem imitar algo do regime de Seul, bem fariam em levar o pacote completo.