sábado, fevereiro 28, 2004

Conteúdo? Brasil?


Num passado recente, ocupar duas páginas inteiras de um grande jornal diário era coisa para reportagem-bomba ou anúncio de lançamento imobiliário de alto luxo. Pois, aproveitando o clima de semicarnaval, o jornal O Globo de 20 de fevereiro ocupou o espaço com um anúncio da própria casa. Mais especificamente, o latifúndio de 3.085 centímetros quadrados de papel e tinta colorida, no espaço nobre do primeiro caderno, divulga o resultado de um debate intelectual promovido pela Rede Globo em associação com a PUC de São Paulo: o seminário Conteúdo Brasil. De um jeito ou de outro, a crise é grave: ou o jornal não sabe o que fazer com o espaço sobrando, ou o investimento é melhor do que parece.

Pois o Conteúdo Brasil, realizado em 12 de fevereiro com a presença de Ariano Suassuna, Arnaldo Jabor, Miriam Leitão, Hector Babenco, Marieta Severo e dezenas de outros, teria tudo para ser mais um lance de masturbação cerebral da intelligentsia. A diferença foi a presença de tantas personalidades da mídia (que, bem à brasileira, são tidas como "intelectuais") e o patrocínio da organização privada outrora tão xingada pelos "produtores de conhecimento" universitários brasileiros. Surpreendente? Nem um pouco.

A TV aberta, espaço de exercício do "monopólio" da Globo que a esquerda denunciou raivosamente por tantos anos, desce a ladeira, ferida pelas guerras da baixaria e pelo bombardeio das mídias alternativas -- o videocassete como bem de consumo popular, o DVD, a TV a cabo, a Internet. E a Globo (que sempre teve em sua folha de pagamento a fina flor da esquerda nacional) embarca na mais deslavada manipulação ideológica de seu conteúdo. Afinal, se a TV da família Marinho sempre foi taxada de governista, por que agora seria diferente?

É nesse contexto que o documento final da assembléia é a mais extensa súplica de mais do mesmo. Admitindo seu poder de lavagem cerebral da mídia por seu "forte impacto sobre o modo de fazer, criar e viver dos brasileiros", a intelligentsia pede "proteção para o setor de serviços culturais" (cotas de tela e similares), "investimento do Estado para a produção e circulação de bens culturais", "mecanismos (incentivos e taxações) que impulsionem o desenvolvimento", "ações que garantam o controle do emprego e da renda para o Brasil" e "políticas tributárias adequadas" para "aumentar a produção de conteúdo nacional".

É claro. Quem produz conteúdo nacional digno do nome? A Globo, ou a TV "brega" que passa o dia transmitindo leilões de tapetes, cultos evangélicos e "jornalísticos" de copiar-e-colar? Qual das duas teria mais medo das cotas de tela? Mantida a restrição atual à entrada de capital estrangeiro nas empresas de mídia, qual das duas será menos beneficiada?

Uma vez amestrada a concorrência direta, falta encaixar nos trilhos a alternativa digital. O documento final do grupo de discussão 3, intitulado "Papel e limites do capital estrangeiro na produção cultural brasileira", clama pela "regulamentação dos novos canais de veiculação de conteúdo (Internet, TV digital, telefonia fixa e móvel), respeitando a liberdade de criação e expressão". Se é para não mexer no conteúdo, qual é a lógica da regulamentação?

Como explica o documento do grupo 4, o espectro eletromagnético, meio de transmissão da TV aberta, "é um bem escasso e por isso foi regulado pelo Estado. Já a infra-estrutura para Internet não é escassa e por isso não teve regulamentação." Só que, na seqüência, a lógica se perdeu no caminho: "Quem 'transmite' uma estação de televisão ou um jornal na Internet não tem absolutamente nenhuma regulamentação. Isto é uma assimetria, na regulamentação, que deve ser estudada e que pode levar à criação de um novo marco regulatório."

Tradução: a Internet não está regulamentada... ainda. Graças a Deus. Qualquer cidadão livre pode criar seu próprio noticiário online, sem ter que beijar a mão de poderosos em busca de concessões, sem gastar rios de dinheiro (e, conseqüentemente, sem depender de megaanunciantes), e dar seu recado ao mundo inteiro. Melhor ainda: com credibilidade crescente. Quem ainda pode levar a sério uma grande mídia como a do Brasil, sempre suspeitamente unânime em torno das mais graves das questões, governista até a medula, caixa de ressonância da manipulação ideológica?

Para quem já está por cima, e tem a tropa de choque intelectual a seu serviço, é urgente varrer essa concorrência inconveniente. Ainda que para debaixo do tapete.

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