Vírus: onde estão os aproveitadores?
O ilustre usuário está de cabeça quente. Tem recebido um monte de e-mails esquisitos e acha que pode ter sido infectado pelo tal vírus MyDoom. Pelo que leu nos jornais, o usuário aprendeu que o MyDoom se espalha tipicamente através de mensagens com assunto "Hi". (Abre parênteses. O Brasil foi um dos países mais devastados pelo MyDoom. Para um povo que, a exemplo de seu governo, se orgulha de não ser puxa-saco dos malditos ianques, até que uma interjeição inglesa de duas letras fez um belo estrago, hein? Fecha parênteses.) E também soube que o espalhador do MyDoom é um usuário como ele mesmo, que, feliz em seu Kazaa 24 horas, nem percebe que sua máquina contaminada virou um robozinho de redistribuição do vírus.
Isto posto, começa a avalanche colateral de consumidores de tempo e de paciência: os avisos do tipo "Um disallowed attachment type foi encontrado numa mensagem de e-mail que acabou de ser enviada por você. Este scanner de e-mail a interceptou e impediu a mensagem de chegar no seu destino."
Disallowed o quê? O destinatário, orgulhosamente monoglota além do "Hi", não entende, mas sabe que não enviou intencionalmente nenhuma mensagem contaminada. A dúvida o consome: O alerta é sério? Meu micro estará contaminado mesmo? Será que o próprio alerta não é um vírus muito bem disfarçado? Como um Chacrinha de bits e bytes, o alerta veio para confundir, não para explicar.
A mensagem de alerta vem com um endereço verossímil do administrador do provedor XYZ como remetente, apresenta um endereço do provedor ZXY como possível destinatário do seu vírus e reproduz até o cabeçalho da mensagem que você teria enviado. Porém, um exame detalhado revela o logro. Primeiro, o tal cliente do provedor ZXY é desconhecido: ele não entrou na lista de endereços do Windows nem acidentalmente. Segundo, o cabeçalho não reflete a realidade do trajeto de uma mensagem real: é muito resumido e só se baseia nos próprios endereços de origem e de destino.
Mesmo depois de destrinchar o alerta, é quase impossível ao usuário resistir a tentação de visitar os sites XYZ e ZXY para ver se tem algo a ver com eles. Dessa forma, ou XYZ e ZXY aproveitaram a paranóia do MyDoom para bolar um spam bem disfarçado e quase impossível de se escapar, ou os adversários armaram o spam exatamente para corroer a reputação de XYZ e ZXY.
Esse não é um caso isolado. Podemos esperar cada vez mais fajutices com títulos como "Seu e-mail está contaminado", aumentando a tendência do usuário a dispensar de antemão qualquer mensagem do gênero. Afinal, a fronteira entre a verdade e o trote está se dissolvendo. É como se não houvesse mais jeito de se saber qual é o Rolex verdadeiro e qual é o relógio do camelô. É aí que entra a questão do caldo de cultura que alimenta vírus e antivírus.
A Usenet, rede de troca de mensagens públicas muito querida nos tempos da Internet universitária-megacorporativa, tornou-se tão inundada de spam, vírus, pedofilia e arquivos fajutos que virou uma irrelevância. Provedores comerciais têm medo de oferecer acesso à Usenet, com razão. O usuário comum sente tanta falta da Usenet (hein?) quanto do Gopher (do que você está falando?) ou do browser em texto puro (isso existia?).
O e-mail está indo para o brejo pelo mesmo caminho. Para se vender antivírus que protejam e-mail, é preciso que o próprio ambiente do e-mail seja levado minimamente a sério. Quando todas as mensagens sérias trafegarem fora do sistema de e-mail que conhecemos hoje, o que os vírus terão a infectar? E o que os antivírus protegerão?
No entanto, tão antigo na informática quanto o temor dos vírus é a suspeita de que os antivírus têm algo a ver com a criação das pragas virtuais. Epidemias como a do MyDoom sempre animam os comentaristas especializados a tirar do congelador essa espécie de teoria, como ocorreu a dois ilustres colunistas do Globo. Primeiro, em seu blog (requer cadastro grátis), Carlos Alberto Teixeira constrói seu raciocínio de suspeita sobre as empresas antivírus ao afirmar qual é a primeira coisa que fará o usuário que suspeita ter vírus: "Óbvio: providenciar um programa antivírus para ter certeza que está limpo."
Em 3 de fevereiro, na coluna Conexão Global (também requer cadastro grátis), Nelson Vasconcelos faz ironia com a própria tese que esposa, ao tratar da "tecnologia que nunca será suficiente mesmo, considerando-se a eterna evolução de vírus e antivírus. Ou será a ordem inversa? Não, não... seria muita maldade, e a Humanidade está longe de fazer dessas coisas."
Os dois escrevem o que os leitores desejam acreditar. Sabem o quanto o cachimbo entortou a boca do leitor típico. Bem informados, os colunistas sabem o que são "redes nômades", o que, no mínimo, renderia uma boa discussão sobre quem mais se interessaria em sabotar o sistema de comunicação mais livre que existe. Mas o leitor não aceita nenhuma explicação de terrorismo digital que não lance culpa sobre as megacorporações transnacionais capitalistas. Não por acaso, o título da coluna de Vasconcelos é "Um bom negócio", referência aos 2,3 bilhões de dólares do mercado de antivírus no ano passado. É tanta gente usando esses guardiões digitais que o "óbvio" de CAT acaba parecendo óbvio mesmo. Na verdade, não há consenso.
A eficácia dos antivírus é sempre relativa; seu preço, no sentido mais amplo do termo, é absolutamente alto. Se desatualizado, é inútil. Se atualizado, é incapaz de rodar em máquinas antigas. De qualquer forma, rouba precioso poder de processamento da máquina, assegurando que o usuário perca tempo em seu cotidiano -- mas sem garantir que o computador seja uma fortaleza inexpugnável contra os novos vírus que surgem a cada dia. Diante disso, não são poucos os usuários que rejeitam os antivírus completamente (como o colega Alexandre Cruz Almeida na nota "Diga não à hipocondria"). Tendo sido avisados dos riscos, preferem assumi-los como gente grande do que cair no atoleiro da guerra vírus/antivírus ou botar a culpa de sua desgraça na orquestração de um punhado de arquetípicos charuteiros vestidos em ternos Armani.
Isso tudo, pelo menos enquanto existir e-mail. Rezem.
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