Lembrança de Roque Santeiro. Antes de fazer carreira internacional como retrato do Brasil (ou algo levemente parecido), a novela-símbolo do pós-ditadura fez um grande desserviço à causa patriótica. Pegou carona na exaltação a uma tal cultura da cachaça e da broa de milho (ou foi a novela que criou o buzz cachaça-broa-de-milho; minha memória de 1985 não é assim tão nítida, mas lembro que não se falava de outra coisa). O garoto-propaganda era o intelectual-esquisito-lobisomem de plantão. Não disse que esse negócio de estudar faz mal à saúde?
Mas o papo da cultura de comer e de beber valia mais pelo não dito: era uma resistência contra O Pirata Lourinho de Olhinho Azul, o bicho-papão dos nacionalisteiros.
Isso é praticamente chutar um cachorro morto. Fácil é tachar hambúrguer de não ser exatamente comida, Coca-Cola de não ser exatamente bebida. É uma atitude que se toma sem fazer careta. Difícil é convencer a galera das virtudes das alternativas. Até parece que é sinal de grande amor à Pátria queimar a garganta e beber até cair. E que seja rápido, antes que se comece a filosofar do ponto de vista privilegiado de quem está muitas doses acima da Humanidade.
Como as Havaianas, o destilado de cana virou coisa chique. Mas enquanto as sandálias são produzidas em massa e não admitem imitações, a força cultural das cachaças está em sua diversidade. Cada aldeia de duzentos habitantes tem a sua. Sempre com uma tradição subjacente ou um rótulo criativo, jocoso, simbólico do etos do Brasil profundo.
Antes era só desconfiança. Virou certeza no dia em que fui a um restaurante regional de butique onde o acervo de cachaça era atração. Nas toalhas de papel das mesas, centenas e centenas de rótulos de cachaça. Mais ou menos como naqueles cartazes das quaquilhões de marcas de cerveja da Bélgica. Enfim um denominador comum de identidade acima das discrepâncias regionais, do abismo social, das etnias e dos sotaques: a cachaça! Viva! Acontece que, diferentemente das cervejas belgas, 99% das cachaças não prestam.
As centenas de nomes são outra prova incontestável, dizem, da sagacidade brasileira. O dicionário lista trocentos sinônimos para cachaça (quem sou eu para contá-los?). Estão no dicionário; todo mundo acha que tem que levar cada um dos nomes a sério. Mesmo que só existam em paróquias minúsculas, sem interesse dicionarizável. Há milhões de termos que os dicionaristas recusam por esnobismo ou correção política, mas parece que a caninha, a pinga, a marvada, a parati etc. etc. amolece qualquer critério.
Ou como você imagina que tenham desenterrado aqueles nomes todos? Do jeito que são caros os dicionários brasileiros, deve existir um exército de pesquisadores vagando pelas brenhas do sertão, um Projeto Rondon lingüístico em busca de novos verbetes e locuções para engordar o pai dos burros.
Um deles chega em Jeripoca do Noroeste e entra numa birosca, ou qualquer que seja o nome que dão àquilo naquelas terras. Os locais estão no balcão entornando muitas e muitas. Olham o estranho por uma fração de segundo. Talvez nunca tenham visto alguém tão pouco bronzeado em suas vidas. O suficiente para que dediquem o típico desprezo caipira a quem não conhecem.
Insensível à falta de calor humano, o bandeirante do idioma encosta no balcão e puxa um papo com os nativos: "Oi, meu nome é Simplício e sou pesquisador do Dicionário Epaminondas da Língua Portuguesa."
A turma se entreolha. Sorrisinhos de Mona Lisa, olhares de “lá vem mais um pato da cidade grande”. O mais velho toma a iniciativa:
“Achegue-se! Seu Zé, manda aí pro nosso amigo a estrogofúndia que matou o guarda."
O mais novo quase tem um ataque de riso de se engasgar no engasga-gato, mas leva uma botinada na canela (nosso pesquisador, agora encantado com a hospitalidade jeripoquense, nada percebe) e faz cara de sério.
Assim segue o papo movido a álcool, como se a cachaça tivesse sido chamada de estrogofúndia desde o tempo dos jesuítas. Ele anota em seu bloquinho: "Estrogofúndia (s.f.): (Bras., Jeripoca do Noroeste) Cachaça." E assim sai no dicionário. Quem vai duvidar? Quem mais esteve em Jeripoca do Noroeste para conferir?
Na cidade grande, no boteco vizinho à faculdade, a descoberta lingüística vira tema de conversa. Quer pegar uma estudante de Humanas descolada e moderna? Diga ao pé do ouvido da moça: "Você sabia, gata, que em Jeripoca do Noroeste eles chamam a cachaça de estrogofúndia?" Pronto! Ganhou pra hoje.
Cachaça também é cultura. Quer dizer, no Brasil a cultura vai pouco além da cachaça.