quinta-feira, junho 22, 2006

Recordar é viver

Gushikenices e as armas de enganção em massa

Por Paulo C. Barreto - 07/04/2004

Então o ministro da Secretaria de Comunicação e Gestão Estratégica, Luiz Gushiken, deu uma olhada nos jornais e tevês e ainda achou pouca a subserviência da imprensa ao governo Lula.

Pelo conjunto de sua carreira e pelo dever do ofício, Gushiken é o primeiro a conhecer a hegemonia dos "companheiros" nas redações. Sabe que, diante da grande causa, nem a mínima dissensão pode ser tratada como algo menos que uma força desagregadora. É por isso que questiona a imprensa que "opera com o raciocínio de explorar o contraditório e que muitas vezes fomenta discórdia e disputa de egos, quando são apenas discussões de idéias".

É por isso que podemos esperar chumbo grosso do ministro. Quando o assunto é defender o regime, ele não brinca nem com a brincadeira.

Por vários anos fui colaborador regular da revista Mad brasileira. Sim, aquela das sátiras de filmes, Respostas Cretinas para Perguntas Imbecis, Dobradinhas e Livros do Ódio. Em 1994 fui encarregado de escrever roteiros de quadrinhos satirizando os dois principais concorrentes à presidência, que ganhariam matérias de capa em edições consecutivas. À época do encargo, ninguém tinha certeza de quem realmente venceria. Lula estava em queda nas pesquisas, mas ainda liderava; por isso, sua "homenagem" veio primeiro.

Escrevi uma fajutíssima entrevista com o candidato, com ênfase em detalhes (sobejamente conhecidos) de sua biografia e sua personalidade, acompanhados das devidas ilustrações. Enfim, nada que os leitores normais da Mad não esperassem, excluídos os militantes radicais e os puxa-sacos contumazes. Um leitor, representante de pelo menos um desses dois grupos, contra-atacou num piscar de olhos.

Em 13 de setembro de 1994 foi enviada ao fax da redação da Mad a carta de Nelson Jandir Canesin, de São Paulo, acompanhada de um abaixo-assinado de 25 nomes (somando a folha de rosto, era um despacho de quatro páginas). Dizia a mensagem:

"O último número da revista Mad, satirizando a candidatura Lula, é de tamanho baixo nível que chega a assustar. Os desenhos e as frases estão carregadas de preconceito não apenas em relação a um candidato a presidente, mas aos trabalhadores em geral. (...) Vocês da revista Mad estão seguindo a trilha aberta pela Rede Globo que aposta na ignorância política de toda uma nação e utiliza seu poder de mídia para fabricar e eleger o candidato que bem entender. Vocês ajudaram a fixar entre seus leitores a visão estreita de que operário serve apenas enquanto está na fábrica produzindo, e que política deve ser feita apenas pelos 'letrados'. Por acaso vocês não sabem que são estes mesmos 'letrados' que estão no poder a [sic] quase 500 anos e que são os responsáveis pela manutenção no Brasil de um dos piores índices de desigualdades sociais do planeta? (...)"

A isto seguiam-se a assinatura de Nelson e as outras 25, muitas difíceis de ler, mas todas acompanhadas dos números das carteiras de identidade. Deve ser coisa autêntica: um bajulador amador não se daria sozinho ao trabalho e à despesa do fax para o Rio só para peitar uma revista que todo mundo (menos ele) sabia que era disso que o Aurélio define como "qualquer escrito ou discurso picante ou maldizente, crítico; troça, zombaria, ironia; censura jocosa."

Quem assumiria esse encargo? A folha de rosto e os cabeçalhos de cada uma das páginas revelavam: o fax tinha sido transmitido do escritório paulistano do deputado federal Luiz Gushiken.

Por mera hipótese, suponhamos que Nelson Jandir Canesin, de carta na mão, tenha batido à porta de Gushiken em busca de ajuda, e que tivesse sido atendido. Talvez até o deputado conhecesse a fama da Mad e dispensasse sumariamente qualquer participação no envio do fax. Ou o ocupado parlamentar, através de um "quem indicou" razoavelmente bom, tenha recebido a carta e ficado tão "impactado" com o abaixo-assinado que foi conferir a revista que enfureceu Canesin & Cia -- e, depois de detalhado exame da matéria, respondeu: "Tá certo que a Mad pegou pesado, mas aquilo é sátira, entendeu? Sá-ti-ra! Fichinha diante do que nossa turma fazia com os milicos! Eu é que não vou gastar verbas de gabinete para passar recibo de lambe-botas do chefe."

Como nada disso ocorreu, é mais fácil acreditar que o deputado não leu a carta nem a sátira: qualquer um, na era pré-Internet e pré-torpedo, poderia entrar no escritório de Luiz Gushiken e faxear a mensagem que quisesse, com a inocência de quem envia uma carta para a mamãe. Já que é o pagador de impostos que banca o interurbano, que há de mau nisso? Isso é que é isenção olímpica diante de picuinhas eleitorais, deixar o barco correr -- mesmo que, entre a produção da matéria e a chegada da revista às bancas (portanto, sem que o "poder de mídia" da Mad tivesse a menor culpa), Lula já tivesse caído para o segundo lugar nas pesquisas, com sério risco (substanciado afinal) de não disputar o segundo turno. E, com isso, credenciar-se a um dia assumir um ministério e dar pitaco na falta de reverência da mídia.

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