O crime que não houve
Tenho que tirar o chapéu para Cora Rónai na coluna de hoje. Ela, como eu, não achou crime nenhum no tal esquema ciberpornográfico que funcionava no Rio até ser estrepitosamente estourado pela polícia na última quarta-feira. Não que eu me interesse em gastar meu tempo com esse tipo de diversão. Mas uma proposta profissional me levou a conhecer por dentro o funcionamento de uma dessas produtoras. Se tivesse encontrado alguma conduta criminosa, não teria hesitado em denunciá-la.
Ano passado respondi a um anúncio de jornal procurando pessoas com experiência para conduzir salas de bate-papo. Compareci no local para uma entrevista e uma pequena experiência.
O estúdio era dividido em saletas isoladas, às quais não tive acesso físico, cada uma ocupada por uma garota em trajes sumários (não nua) e um nome-clichê qualquer, uma câmera operada por controle remoto, um alto-falante e um teclado. A câmera transmite tudo para o site enquanto taradões do mundo inteiro (menos do Brasil) entram numa sala de bate-papo e conversam em modo texto com a garota.
Mas é um pouco demais esperar que as modelos-e-atrizes consigam fazer poses desinibidas, operar o controle remoto da câmera e participar de um chat em inglês fluente. Nesta última tarefa é que entra o time de especialistas em bate-papo, enquanto as garotas só fingem que digitam.
É um trabalho que exige um certo talento. A criatividade dos digitadores é fundamental para atrair os usuários -- e seus cartões de crédito -- para as desinibidas salas privativas. Mas a firma paga muito mal, em longos expedientes e poucos intervalos, sem qualquer garantia formal ou informal além do contrato de prestação de serviços. Acendeu a luz amarela; ainda assim, não vi coisa alguma que merecesse ser denunciada.
Ou a polícia estourou o tal "bordel virtual" pelos motivos errados, ou não se incomodou em revelar os possíveis motivos certos. Nem uma palavra sobre exploração de menores, escravidão sexual, sonegação fiscal, falta de alvará, lavagem de dinheiro ou vínculo com organizações mafiosas. Pelo noticiado, as moças não sofriam sequer "assédio moral", o novo modismo fascista dos sindicatos. Se sofressem, sairia nas manchetes.
Mas notem a seletividade do precedente.
Se exibir-se diante das câmeras é crime, há um monte de produtoras de filmes que só não são garfadas porque não são taxadas de "virtuais". Ainda assim, um americano e um venezuelano foram presos por exploração de casa de prostituição e outro sócio americano está sendo procurado pela polícia. Depois dos pivetes, é a vez da polícia entrar na temporada de caça aos estrangeiros. A delegada diz que o tal site faz parte de uma organização internacional. Parabéns. Deve ser a única multinacional a se instalar no centro do Rio nos últimos dez anos. O site atendia unicamente a clientes estrangeiros, bloqueando acessos de usuários do Brasil, o que na cabeça das autoridades policiais federais deve ter alguma coisa a ver com a política arrogante e unilateralista da doutrina Bush. Os clientes pagavam em dólares. A vergonha de receber uma moeda tão desvalorizada deve ser mesmo um crime. A imagem das garotas era exportada pela Grande Rede. Riquezas nacionais, como a beleza das mulheres, não podem ser entregues à rapina do Primeiro Mundo nem virtualmente.
O mais estranho é que um site com um faturamento estimado de 100 mil reais por mês parecia ser incapaz de fazer o mesmo que todas as "casas de massagem" e "centros de lazer" que funcionam como bordéis nada virtuais: manter as portas abertas na base da propina. Pelo visto, os estrangeiros donos do negócio passaram um pente fino na lei, concluíram que a transmissão das imagens das meninas não feria nenhum artigo do Código Penal e pensaram que a lei seria interpretada a seu favor, de modo que não precisariam molhar a mão de ninguém. No Brasil, onde não se consegue nem vender chiclete na esquina sem se dobrar ao poderoso do pedaço. Otários.
segunda-feira, novembro 29, 2004
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