terça-feira, fevereiro 03, 2004

Máfia Niterói: quem esperava diferente?


"Máfia" deixou de significar qualquer coisa do mundo real. Espichando-se desde o grupo especial dos cinematográficos Dons Corleones até a terceira divisão de energúmenos que desfilam de Mercedes nas ruas de Moscou, o conceito já não passa de um rótulo de desprezo ao tipo de crime organizado que, depois de décadas sendo enaltecido pela mídia, fugiu ao controle e deixou de atender aos interesses políticos da patota. É a transgressão da transgressão.

Por isso, o orgulho da molecada em autodenominar "máfias" as gangues violentíssimas das quais fazem parte, como O Globo revelou neste domingo aos que ainda não sabiam. A reportagem "Gangue virtual, violência real" conta que "em Niterói, formaram-se gangues virtuais que ameaçam outros adolescentes, marcam brigas com rivais e trocam músicas de apologia do tráfico. Além disso, expõem fotos de armas em seus sites." (recomendo a leitura do texto completo; mesmo os não-cadastrados poderão pegá-lo através da Busca, na coluna da esquerda do site).

O caso de Niterói, é claro, não é isolado, mas é um exemplo perfeito. Tendo sido criado em Niterói, eu é que não esperava que fosse diferente. Ninguém é socialista impunemente.

Antes de tudo, dispensem o conceito de "gangue virtual". A tal "Máfia Niterói" é uma quadrilha real que usa a Internet como meio de comunicação. Nada de especial nesse retrato da net-sociedade nacional: também em Niterói, uma das cidades mais "incluídas digitalmente" do Brasil, a classe bandida está muito bem representada na Grande Rede. Bem até demais para os palermas que acham que quadrilheiro do século 21 usaria telégrafo, tambores ou pombo-correio!

Com Internet ou sem ela, niteroiense gosta de fazer tudo entre compadres, mais do que esperaria numa cidade daquele tamanho. Quanto mais do andar de cima, bafejada pela mitológica "qualidade de vida" que põe Niterói entre os melhores municípios brasileiros, menos penetrável é a panelinha. Se for uma daquelas tribos que se ufanam de sua ascendência européia, à beira do racismo, pior ainda. E como numa Brasília al mare, hordas de adolescentes bem de vida acham que podem tudo na vida. Corrigindo: têm certeza. Enquanto papai der cobertura, não há risco nenhum em botar fogo no índio, não é?

Mas há outras semelhanças essenciais entre Niterói e a capital federal, além de um conjunto de edifícios faraônicos da grife Niemeyer (mas não ouse dizer isso na frente de um niteroiense), que poderiam iluminar os palpites dos "adolescentólogos" oficiais. De volta à reportagem do Globo: a psiquiatra Clara Inem, ao analisar a questão da Máfia Niterói, "frisou que a agressividade e a competitividade, a cada dia mais valorizadas na sociedade como fatores de sucesso no mercado de trabalho, são encaradas na adolescência de uma outra forma: como violência e poder."

Faltou à doutora explicar em qual dimensão paralela o etos niteroiense valoriza o tipo de agressividade e competitividade que ela tem em mente. Para que haja mercado de trabalho propriamente dito, é preciso haver um setor privado em quantidade e qualidade acima da completa irrelevância. Sobrou algo parecido em Niterói frente à expansão descontrolada do setor público, abençoada pela mídia e dada como direito de nascença pela elite local? Quem está na ativa e é alguma coisa em Niterói está na folha de pagamento da União, do estado ou do município; no mínimo, pela exclusão da alternativa; no máximo, por um culto ancestral a qualquer coisa que cheire a Estado. Isso daria o que pensar sobre o caldo de cultura em que meninos ricos lambem os pés de traficantes -- se os próprios adolescentólogos não tivessem seus cargos públicos a zelar.

Quando observam a paisagem humana que os cerca, os filhos do andar de cima de Niterói vêem que o caminho da competitividade é estreito e pedregoso. Os bem-sucedidos só pensam em salários atraentes (novamente, por exclusão da alternativa), estabilidade, longas férias, triênios, licenças, aposentadorias integrais. É a diferença entre ser burro e inteligente, ser esperto e otário. Até as crianças percebem logo qual é o verdadeiro establishment no pedaço. Aconteça o que for, o papaizão proverá.

(no próximo post, pois aqui já me estendi demais: as urnas, a síndrome de Estocolmo e a desastrosa niteroização do Brasil)

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