A rede dos oprimidos
Os governos de países miseráveis lutam para conduzir seus despossuídos às maravilhas da sociedade mundial interconectada? Acham que sua boa-vontade pode ser recompensada com uma fatia maior de poder na gestão da internet, especialmente no registro de domínios? Enfim, os mandatários dessas nações confiam mesmo no poder da grande rede?
Então ponham sua fé à prova. Desistam de longas e dispendiosas sessões de blablablá em países distantes, como a Cúpula Mundial da Sociedade da Informação que será realizada na capital da Tunísia em novembro. Passem a tesoura nas passagens intercontinentais e nas reservas de hotéis de si mesmos, de seus diplomatas e dos internetólogos amigos. Se a turma tiver algo sério a dizer no evento, que compareça via teleconferência. Simples assim. Não faltam meios para tal: Skype, MSN, ICQ, AIM, IRC, Google Talk e mais uma dúzia. A participação de cada país terceiro-mundista na Cúpula Mundial custará menos que uma nécessaire de primeira classe de empresa aérea e trará tanto resultado quanto a reunião ao vivo. Ou até mais, na ausência das encantadoras distrações mediterrâneas. O primeiro internetólogo que argumentar que nada se compara com o olho-no-olho do encontro real em Túnis será sumariamente ejetado de seu cargo de confiança. Para os súditos famintos, como dizia Stanislaw Ponte Preta, a ausência do fulano preencherá uma lacuna.
No século 21 qualquer cursinho de certificação em informática se faz via Web. Reunião presencial é para quem tem escassez de competência ou excesso de dinheiro. Seja qual for o motivo, tanto uns quanto outros continuam vivendo à tripa forra, dando mil voltas pelo mundo, aparentemente em busca de um vento estrangeiro que leve inteligência aos ignorantes, honestidade aos picaretas e objetividade aos enroladores. Otários somos nós da platéia.
A cúpula da ONU em Túnis é só a culminância de um circuito de encontros que enriquece as agências de viagem que atendem a governos. Começando em 2002, entre conferências regionais e eventos preparatórios, a caravana passou por Máli, Suíça, Romênia, Japão, República Dominicana, Líbano e França. Sempre de olho na primeira etapa da Cúpula Mundial, em dezembro de 2003 em Genebra, o Monte Olimpo da burocracia globalitarista. Em 2004 e 2005, novas reuniões em Genebra (dez encontros!), Nova York e a tunisiana Hammamet. Tudo ao vivo, como se tivessem esquecido de pagar a conta da conexão de rede no quartel-general da União Internacional de Telecomunicações. E tudo burocraticamente planejado para impossibilitar, depois de quase quatro anos, a obtenção de qualquer definição decisiva que seja. Se trabalhassem no mundo real, esses PhDs em blablablá estariam há tempos no olho da rua.
E qual é a pretensão dos acólitos da ONU portadores de tamanha "objetividade"? Yoshio Utsumi, líder da UIT, afirmou categoricamente que a entidade está pronta para assumir a gestão dos domínios da internet no lugar da Icann. É fato que a Icann é uma corporação sem fins lucrativos contratada pelo Departamento do Comércio dos EUA para a função de administrar os domínios, o que tem causado uma baita irritação no resto do mundo. Na cabeça da fila dos queixosos, a Europa continental. Apesar do dinheiro, do esforço e do nível intelectual, nunca produziu um mísero sistema de computadores bem-sucedido. Logo atrás, o Terceiro Mundo, os comunistas e os ex-comunistas, que devem a informática que têm à "patriótica" apropriação chupinista das conquistas dos outros. E, se dependesse de ambos os grupos, jamais teria existido internet alguma. É curioso como desejam cantar de galo a esta altura do campeonato.
Duvidam? Numa das incontáveis reuniões, a delegação brasileira fez seu showzinho. Eis a proposta: a continuar a intransigência americana, os "emergentes" liderados por Brasil, Índia, África do Sul e China deverão pensar em criar uma rede paralela, incompatível com a internet como a conhecemos. Bandung rediviva em versão interconectada. Sérgio Rosa, diretor do Serpro, defende a aliança da periferia lembrando que brasileiros, indianos e chineses estão entre os melhores técnicos em informática do mundo. E ainda melhores, lembro eu, em outras coisas de internet que não pega bem lembrar em assembléias internacionais.
Se o plano mantivesse mesmo os brasileiros longe da internet, a proposta teria muitos apoiadores de peso. Por exemplo, a administração da Efnet, rede de IRC que foi praticamente destruída por disputas de controle de canais e bombardeios de pornografia infantil até que passaram a barrar na entrada todos os acessos originados no Brasil (de usuários honestos, pois os hackers sempre acham um meio de penetrar na festa dos outros). Sites como o da Nasa, que se cansaram de receber ataques orquestrados de brasileiros dia e noite. Todos os servidores de correio eletrônico fora do Brasil, que desconfiam previamente do manancial tupiniquim de impuníveis spamzeiros, hackers e distribuidores de vírus. Ou o Orkut, invadido (lenta e gradualmente) por brasileiros como a Europa pelos bárbaros na Idade Média: chegaram, enxotaram os estrangeiros e impuseram sua "lei" de vínculos sociais inverificáveis e spam gerado automaticamente.
Tudo depende do ponto de vista. Os internetólogos pensam que ameaçam os poderosos. Na verdade, prometem um sopro de esperança.
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A escolha da Tunísia como sede é emblemática. O governo tunisiano tem feito um grande esforço para levar a internet a seus súditos, com destaque para a disseminação dos cibercafés estatais. Essa "inclusão digital", porém, funciona mais ou menos como a alfabetização plena dos cubanos: só serve para os fins autorizados pelo governo. O Big Brother da Tunísia controla os provedores de acesso (desta forma, obtém facilmente as listas de usuários ativos), costuma mandar bloquear sites politicamente inconvenientes e submete os noticiários da internet à mesma censura prévia dos jornais e revistas. Zouhair Yahiaoui não se lembrou disso quando montou um site criticando o presidente Zine el-Abidine Ben Ali. Bem feito: passou um ano e meio dividindo com 80 presos uma cela de 40 metros quadrados, Só saiu da prisão depois de morto, aos 37 anos. Mohamed Abbou, outro jornalista online que ousou criticar Ben Ali, está encarcerado desde 1º de março, apesar da incansável campanha dos Repórteres Sem Fronteiras e de organizações correlatas.
A Cúpula Mundial da Sociedade da Informação terá terceira fase em Pequim? E quarta fase em Havana?
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Como (ainda) não estamos na Tunísia, podemos verificar às vésperas do referendo do comércio de armas um fantasticamente ativo underground de apoio ao Não, de uma forma que só a internet revelaria. No Sim da televisão, os artistas globais falam (no horário de propaganda propriamente dito, como já falavam nas novelas e minisséries), a platéia escuta apalermada. E ponto final. Notamos que os partidários do Não estão muito mais articulados e unidos em seu pensamento: sabem muito bem por que votarão do jeito que votarão. Enquanto isso, quanto mais falam, mais os partidários do Sim mostram quão vagas são as idéias que os movem. No debate livre da internet, ou acabam dando corda para seu próprio enforcamento ou se recolhem ao silêncio para evitar um vexame maior.
Mas não há milagres. Uma das mensagens pelo Não levanta um argumentozinho estapafúrdio: o Sim não passaria de uma orquestração da indústria internacional de armas para impedir que os armeiros brasileiros exportassem sua produção (se não puderem comercializar para brasileiros, também não poderão para estrangeiros). Para quem, diferentemente de Ancelmo Gois, nunca enxergou "bancada da bala" nenhuma, causa espanto perceber que inventaram duas: uma do "mal", reunindo os proverbiais piratas lourinhos de olhinhos azuis, outra do "bem", tolerável por ser formada por irmãos da pátria-mãe gentil. Eis o resultado de um referendo que, na prática, não decidirá coisa alguma, pois o debate ainda está muito aquém da discussão de direitos civis e o Estatuto do Desarmamento já é intoleravelmente restritivo para gente honesta. Tudo se resume a um revolta pirracenta contra o Cidadão Kane e os ricaços que o servem, contra os inimigos do povo (externos e internos) e contra a autoridade desgastada do governo. Esse que circunstancialmente está aí; "o" Governo em si, é claro, permanece intocado. Eis um referendo que realmente faz falta.
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