Um guru contra o progresso
14/10/2003
Nicholas Negroponte diz que computadores deveriam ser mais baratos. Em busca de culpados, demitiu a lógica.
Negroponte, guru da alta tecnologia, em entrevista à revista Istoé Dinheiro, acusa a Intel e a Microsoft de manter os preços dos computadores artificialmente elevados, nestes termos:
A cada ano, a Intel aumenta a capacidade de processamento do computador e a Microsoft faz um software ainda mais complicado. A todo momento eles anunciam aperfeiçoamentos e características novas e, claro, mais caras. Isso acontece porque a indústria não quer encarar o seu produto como uma mercadoria de baixo preço. Em 1985, o meu Macintosh 512, da Apple, satisfazia boa parte das minhas necessidades. Hoje esse mesmo equipamento deveria custar menos de US$ 10. Então, a pergunta que se faz é: por que os computadores são tão caros hoje em dia? Nós precisamos parar com esse movimento o mais rápido possível. E um dia nós vamos conseguir.
Mesmo considerando que o Macintosh não usa processador Intel nem sistema operacional Microsoft, o exemplo serve perfeitamente para derrubar a teoria do próprio Negroponte. Nada mais natural que um Mac 512 saia hoje por menos de 10 dólares (em termos de mercado dos EUA; entre os brasileiros, que dependiam dos contrabandistas, essa máquina era muito rara), quando na época do lançamento custava 3.300 dólares, fora os impostos. Com direito a 512K de RAM, um único drive de disquete de face simples e o monitor preto-e-branco de nove polegadas que os colecionadores elevaram à categoria de clássico.
Se Negroponte tivesse guardado os 3.300 dólares debaixo do colchão, mesmo sem considerar a alta do custo de vida e o quanto o dinheiro teria rendido na mais conservadora das aplicações, ainda hoje o guru do MIT poderia fazer uma bela farra nas lojas de computadores. O PowerBook G4, topo da linha de notebooks da Apple, sai por 3 mil dólares na loja virtual de fábrica, sendo que desta vez temos um micro totalmente portátil, com direito a visor de cristal líquido de 17 polegadas, mil vezes mais RAM que o Mac 512, disco rígido de 80GB, gravador de DVD, USB, FireWire, Gigabit Ethernet, Bluetooth, 802.11g e outros aperfeiçoamentos e características novasem que Negroponte tascou a pecha de mais caras (desnecessário entrar nos detalhes do pacote de software que acompanha o PowerBook G4; consultem www.apple.com).
É dinheiro demais por um computador? A mesma loja está recheada de opções mais baratas, provavelmente de custo/benefício superior. Certo, mesmo, é que naqueles tempos Negroponte investiu bem ao trocar seus dólares por um computador capaz de se pagar várias vezes um aspecto do valor da informática que as análises ideologicamente enviesadas fingem que não vêem -- mesmo que, antes disso, tivesse se consumido em interrogações diante das vitrines: por que os computadores são tão caros hoje em dia? (Boa pergunta. E no tempo do cartão perfurado eram mais baratos?).
Há um único motivo para o Mac 512 hoje não custar nem 10 dólares: desde os anos 80 a Apple lançou dúzias e dúzias de novos Macs cada vez mais poderosos. O que ocorre com os computadores da Apple se repete, no mínimo, com o mesmo ímpeto no mundo dos PCs e estes ainda são mais baratos que Macs comparáveis. A perda de valor de computadores antigos desafia qualquer cálculo de depreciação (http://idgnow.terra.com.br/idgnow/business/2003/09/0062), para a felicidade dos caçadores de pechinchas. Mesmo que não seja economicamente viável ao usuário típico comprar o topo de linha, a mera existência de um produto mais avançado puxa inexoravelmente para baixo os preços dos modelos anteriores. Todos saem beneficiados: uns consumidores conseguem máquinas mais poderosas, outros atingem acesso a máquinas mais baratas. Mas acredite: no fundo, no fundo, parar com esse movimento o mais rápido possível deve trazer ao usuário algum benefício que Negroponte não ousa revelar...
Não apenas os computadores não ficam mais caros ao longo do tempo (muito pelo contrário) e as máquinas Intel/Microsoft não são menos acessíveis do que as da concorrência, como as próprias Intel e Microsoft têm competidores tidos e havidos como mais baratos e seguros. A Microsoft tomou conta de quase todo o mercado de sistemas operacionais para PCs. Como resultado de seu sucesso, atraiu concorrência. No início dos anos 90 o OS/2 estava muito bem posicionado para enfrentar a dupla DOS/Windows: era riquíssimo em recursos, oferecia estabilidade e funcionalidade e era um produto IBM. Como exigia grandes quantidades de memória RAM (um componente que passava por uma fase de escassez e preços altos), ficou para trás.
Mas por essa época começou a crescer sem parar uma oferta ainda mais vantajosa. Se o custo da licença de uso do Windows não compensa? O Linux não é cobrado, pode ser customizado à vontade pelos programadores, é compatível com diversas plataformas, roda bem até em micros relativamente defasados, não apresenta as falhas de segurança pelas quais o Windows é tão criticado e aceita milhares e milhares de programas igualmente grátis. Por estar cada vez mais útil e amigável, o Linux se aproxima de milhões e milhões de usuários inexperientes (não fosse a pressão de enfrentar o Windows, a história poderia ter sido outra; de qualquer forma, o usuário saiu ganhando).
O leitor desavisado, ao se deparar com a entrevista de Negroponte, deve pensar que a Intel está sozinha no mercado e inventa chips novos num estalar de dedos ou, pior, tem uma fonte que jorra chips magicamente sem parar. Criar um novo microprocessador envolve estudos bilionários, e são consumidos outros bilhões para montar fábricas destinadas à vida curta: lançado um novo chip, é preciso começar (e gastar) tudo de novo. Por que a Intel se obriga a essa corrida estonteante? Se deixar a peteca cair, será superada pela AMD em pouco tempo. A AMD, que também mantém excelentes relações com a Microsoft, desde os anos 80 consegue a façanha de oferecer processadores centrais (no mínimo) funcionalmente equivalentes aos da Intel, só que mais eficientes e mais baratos.
O vaticínio de Negroponte de parar com esse movimento, se cumprido, daria uma folga monumental à Intel: bastaria manter a mesma fábrica produzindo o mesmo chip de sempre por dez, quinze, vinte anos, sem que os preços caíssem brutalmente, multiplicando o retorno do investimento - desde que fosse garantida a demanda pelo chip e eliminada a pressão tecnológica da concorrência. Como no futebol, a tática é brilhante, mas só falta combinar com o adversário.
É até razoável esperar de usuários comuns palpites como esse. Mas Nicholas Negroponte não é burro. Ele sabe com quem está falando, e quando fala, os donos do poder da tecnologia da informação escutam. Podemos tomar suas palavras como uma medida razoável do ponto a que chegou o conceito que faz a comunidade de TI do sucesso de uns e do fracasso de outros.
Xingar é fácil. Fazer comparações em bases honestas, por sua vez, parece uma façanha ao alcance de poucos.