quinta-feira, outubro 21, 2004

Meu professor inesquecível

Com a oportuna escalação de Eduardo Neiva, brasileiro, professor da Universidade do Alabama em Birmingham, para o time de comentaristas da campanha eleitoral americana, enfim O Globo escapa do embrulho armado por si mesmo: palpites que posam de exposição de fatos, ideologia que posa de neutralidade e reprodução descontextualizada (que palavra!) de despachos internacionais como se fossem... Ora, seu verme, se deu no New York Times, quem você pensa que é para discutir?

Em meus tempos de, com o perdão das más palavras, estudante de Comunicação na UFF, tive uma única disciplina com Neiva, mas foi o que bastou para torná-lo inesquecível. Eis a distância de anos-luz entre Neiva e a maioria de seus colegas professores: ele não estava lá para brincadeira. Trouxe dignidade, dentro do pouco que era possível, à cadeira que ocupava.

Num tempo em que professores não eram exatamente famosos pela observância ao horário, ele começava a aula às 18 horas em ponto, e -- milagre! -- não faltava. Os alunos, mal acostumado com os quebradores de galho, protestaram no ato. Diziam que trabalhavam longe, não podiam chegar a tempo. Neiva respondeu no ato: "Ninguém enganou vocês quanto à hora de início da aula; está lá na grade curricular."

Fazia questão de apagar o quadro com um papel amassado qualquer (se fosse pela conveniência, poderia ter comprado um apagador baratinho em qualquer papelaria) para que não faltassem testemunhas da graça e do veneno da administração universitária, incapaz de destinar a um professor um apagador de verdade.

É claro, foi denunciado certa vez por ter furado uma greve. Só com o tempo é que fui ver o quanto euzinho, como aluno, fui prejudicado profundamente pelas semanas e semanas sem aulas. Peixe não tem consciência de que vive na água.

Dava aulas de verdade, plenamente compreensíveis. Quem aprendesse, passava; quem não aprendesse, levava bomba. Não era preciso tentar adivinhar o que ele esperaria de nós. Que diferença dos outros. Se Derrida afirmar X, é um gênio. Se eu afirmar o mesmo X com outras palavras numa prova, não passo de um 5,5. Vai ver que fui eu que não entendi que aquela nota tanto poderia ser uma nota como poderia não ser, ou as duas coisas ao mesmo tempo, ou vice-versa...

Outra coisa que Neiva tinha de sobra: senso de humor de verdade, não esse cruzamento de bufonaria e grosseria (que só aumentou quanto mais moças chegaram aos bancos universitários) usada para apoiar agendas específicas. Professor típico dá de barato que aluno de faculdade está muito bem em seu mundinho de menininhos, e seria uma agressão inominável pretender educá-lo (conduzi-lo para fora) de modo que ambos saiam de suas zonas de conforto. Por essas e outras é que hoje Bâsh é escr*, Bâsh é b*b*ca e Bâsh é f* da p*, argumentos profundíssimos que conferem brilho de santidade aos argumentadores e provavelmente deixam trêmulos os joelhos na Casa Branca.

Não faltaram oportunidades para Neiva tirar uma com a cara dos alunos, cada vez mais espantados com a necessidade de se estudar alguma coisa a sério. Um dia ele indicou um livro dele mesmo (eis a capa). Estava certíssimo: se o professor não confiar nele mesmo como autor, em quem mais deveria? Antes que os "ai, que saco" ganhassem volume, ele explicou: "Se eu fosse depender das vendas de livros meus para os alunos, agora eu estaria numa ilha no Caribe tomando água de coco e cercado de lindas mulheres."

Não passou trabalhos absurdos. Quer dizer, não inventou pretextos para poupar a si mesmo de dar aulas. Em compensação, as provas vieram com o máximo rigor. Alguns alunos não acreditaram no que viram. 90 por cento da turma foi para a final. Uma besta perguntou se era prova de consulta. Resposta: "Eu, dar prova de consulta? Só no dia em que galinha criar dente." Pediram esclarecimentos do que ele queria dizer com a questão A ou a questão B. Respondeu: "Não digo nada. Estou como aquele filme que vi ontem: Quanto mais idiota melhor."

*****

Pouco antes dessa fase, Neiva foi entrevistado pelo Informática Etc. como usuário de longo curso, o que, naquele tempo, era algo digno de nota (em geral, professores de Humanas andavam e andavam para computadores). Sentenciou: impressora, só a laser. É verdade que, em tempos de reserva de mercado, uma laser era caríssima no Brasil e as matriciais ainda dominavam. Mas a ficha ainda não caiu.

Desde então o preço das lasers só não despencou mais rapidamente que o das jato-de-tinta, evidenciando o maior conto do vigário da história da informática (a rapinagem é tão grande que até cartucho preto virou acessório "opcional"). São frágeis, sua tinta custa uma fortuna e só funcionam enquanto existirem cartuchos compatíveis.

Por que os odiadores do grande capital monopolista e opressor etc. etc. não dão um pio? Burocrativistas não pagam pela tinta que usam. Quem se guia pela emoção barata (literalmente) de pagar pouco pela máquina e achar que faz um bom negócio são os outros, não eles. E a Campanha contra a Fome recolhe cartuchos vazios (quando a própria indústria não inventa truques de hardware e software para torná-los inaproveitáveis), que devem render uma boa grana. Podemos esperar um futuro risonho e franco para esses engodos eletrônicos.

No reverso da medalha, a galera retrocede ao tempo das impressoras matriciais, desconfiando -- com razão -- que a tinta baratinha compensa a lentidão, a barulheira, os resultados pífios e o preço da máquina (quase o de uma laser). E destacar remalina é tão romântico...

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Em seu artigo inaugural na série, "Dois estilos e um abismo entre eles", publicado no último domingo, Neiva foi incisivo contra a empáfia de nossos politicólogos:

Pelo que pude perceber, os extremos da pirâmide social americana reservam sua confiança para Bush. Os mais educados, em geral, inclinam-se na direção de Kerry. É um erro crasso, produto de desconhecimento dos EUA, achar que Bush dirige-se a essa ficção preguiçosa e injustificável que seria "o americano médio". O quadro de afinidades políticas, nesta eleição, é mais complexo.

Curiosamente, a visão de Neiva sobre o eleitorado de Bush acabou sendo muito semelhante a uma análise de esquerda dos três C que elegeram Collor: canalhas, covardes e capiaus (na verdade, não eram "covardes", mas outro adjetivo começando com C que prefiro não citar). A diferença é que, naquele tempo, nenhum "analista" ousou dizer que o resultado da eleição expressava a vontade do "brasileiro médio". Que facilidade os pascácios têm de se colocar fora do país, fora do mundo, fora do universo. Talvez lá de Birmingham o professor Neiva enxergue isso melhor que qualquer um dos locais.

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